Ao contrário daquela que parece ser a opinião dominante, senão unânime, não vejo nos episódios de ontem, necessariamente, um prejuízo grave para o país. É verdade que as declarações de Cavaco Silva e do PS foram invulgarmente duras. Mas, justamente por terem sido duras, foram também clarificadoras.
A tensão surda que até ontem era indirectamente alimentada por terceiros, pontuada por cinismos, ironias, indirectas e remoques dissimulados deixou de ter pasto para crescer.
Os protagonistas directos saíram de trás das suas fontes e assumiram-se, na primeira pessoa, ficando claro ao que vêm. As palavras e atitudes de ambos podem, doravante, ser objectivamente escrutinadas pelos portugueses, enquadradas no seu verdadeiro contexto.
Dir-se-à que aquilo de que o país, neste momento, menos precisava era de uma situação de incompatibilidade política (no pressuposto que a compatibilidade institucional, mais do que possível, é obrigatória) entre os dois principais órgãos de soberania. Assim é.
Contudo, se a ruptura política é uma realidade incontornável, e ao que parece inultrapassável, seria bem pior que permanecesse escondida na sombra à mercê de interpretações supostamente graciosas.
A verdade é que, ao longo destes últimos meses, o sistemático recurso às 'Fontes' revelou-se tão pernicioso para o sistema político-constitucional quanto os offshores, quando utilizados com objectivos menos claros, se revelaram prejudiciais para a saúde do sistema económico-financeiro. Uns e outros permitiram - e permitem - a ocultação da origem de fluxos, financeiros, estes, de informação, aqueles, objectivamente servindo as mais variadas e grosseiras manipulações.
Ontem, fez-se luz e os portugueses podem agora fazer os seus juízos com maior clareza.
«Mas onde está o crime de alguém, a título pessoal, se interrogar sobre a razão das declarações políticas de outrem?»
Depois de, no princípio da década de 90, Mário Soares ter instituído O direito à indignação, Cavaco Silva decretou ontem O direito à interrogação.
«Foi por isso, e só por isso, que procedi a alterações na minha Casa Civil.»
José Junqueiro
«Destacada personalidade do partido do Governo». A subir.
Rui Paulo Figueiredo
«Não conheço o assessor do Primeiro-Ministro nele [e-mail] referido». A descer.
«apesar de todos saberem que eu, pela minha maneira de ser, sou particularmente rigoroso na isenção em relação a todas as forças partidárias.» Cavaco é como é, e continuará a ser: intrinsecamente isento.
(aqui)
Simplesmente genial, de resto, comme d'habitude:
«Foi para esclarecer esta questão que hoje [Hoje? Hoje?! Hoje, dia 29? Quer dizer agorinha mesmo, antes de vir para aqui?] precisamente hoje ouvi várias entidades com responsabilidades na área da segurança.»
«O Presidente da República tem certamente coisas graves para dizer ao país e entendeu que se as dissesse interferia no acto eleitoral.»
Eu? Eu nunca falei em escutas nem em vigilâncias, nunca! Mas já que falam nisso...
(voltaremos ao tema)
Os quarenta longos dias que passaram desde a notícia do Público sobre a suspeita de vigilância a membros da Casa Civil do Presidente da República, por entre declarações de sinal contraditório, silêncios enigmáticos, demissões - ou afastamentos - ao retardador, revelaram-nos o velho Aníbal Cavaco Silva que alguns pareciam já ter esquecido. Um político que apenas está confortável quando domina o jogo, quando é ele que dá as cartas.
Se os acontecimentos, por qualquer razão, fogem do seu controlo, é o desastre. A autoridade cede à insegurança e a tibieza toma o lugar da determinação.
Desde o dia 18 de Agosto, o comportamento de Cavaco Silva tem sido pouco diferente do de uma girafa numa loja de porcelana. Cavaco Silva perdeu o pé e é senti-lo a esbracejar, tentando por tudo manter-se à tona da água. Por detrás da sua pose seráfica, com que pretende criar a ilusão de que é ele, ainda, o dono jogo, está um homem profundamente desorientado e, imagino, angustiado.
Num momento particularmente feliz, quando, no P&C de ontem, convidado por Fátima Campos Ferreira a avançar com uma hipótese para o teor da comunicação desta noite, Carlos Abreu Amorim respondeu de forma lapidar: «nem o Senhor Presidente sabe o que vai dizer».
Há mais de um mês que Cavaco Silva caminha, por sua única e exclusiva responsabilidade, para um beco sem saída. Hoje, é um homem encurralado e não sabe como há-de sair desta.
Esta noite, ou quando decidir falar sobre a polémica, Cavaco não tem mais a que se agarrar do que à ideia da Suspeita. De resto, em linha com a argumentação de José Manuel Fernandes.
Dirá Cavaco que, tratando-se do órgão máximo de soberania da nossa República, não pode qualquer Suspeita, por mais leve e inverosímil que pareça, ser tratada com displicência. Seria uma irresponsabilidade. Dirá Cavaco que a saúde da nossa democracia e a solidez do nosso regime não são compatíveis com a existência de dúvidas, situações mal esclarecidas, Suspeitas. Dirá Cavaco que não pode permitir, ainda que por omissão, que se instale o vírus da suspeição, e correr o risco de vê-lo corroer o normal funcionamento das instituições democráticas. Concluirá Cavaco dizendo não ter sido esse o compromisso que assumiu com os portugueses, não ser essa a atitude que os portugueses dele esperam. Suspeito, logo averiguo, dirá Cavaco. Isto ou outra merda qualquer. A ouvir vamos.
Em nota publicada na página oficial da presidência da república, Sua Excelência anuncia para as oito da noite uma «declaração à comunicação social».
Não sendo de descartar uma intervenção sobre os resultados eleitorais de domingo, com o objectivo tomar as rédeas da condução política do processo de formação do novo governo, aposto, ainda assim, numa tentativa de arquivar o caso das escutas/vigilância.
Com Cavaco, sabemo-lo, nada é deixado ao acaso. Uma declaração à comunicação social não é a mesma coisa que uma comunicação ao país, formulação utilizada em Agosto de 2008, por ocasião da 'questão dos Açores'. Não estamos, pois, perante uma liberdade literária da assessoria de imprensa. E se o anúncio de uma comunicação ao país representa, na escala de Belém, um nível de 'alerta vermelho', a declaração à comunicação social não vai além de um 'alerta amarelo'. Donde, uma primeira conclusão é a de que Sua Excelência pretende, a começar pela forma, aligeirar o impacto da sua declaração.
De igual modo, o (julgo) inovador modelo escolhido fará ainda mais sentido se no final houver lugar a perguntas dos jornalistas. Nas respostas, Sua Excelência poderá abordar pormenores laterais à questão de fundo sem que a eles se tenha de referir na intervenção inicial, assim recusando-lhes relevância.
Dito isto, confesso-me curioso sobre a narrativa de Sua Excelência e a possibilidade de esta acolher, beyond reasonable doubt e com total coerência argumentativa, todos os factos que por ora são do conhecimento público.
Balançando entre subscrever a tese da 'inventona' ou a da gaiatice, tenho para mim como certo que o misto de incredulidade e cepticismo com que foi recebida a primeira notícia, divulgada a 18 de Agosto, obrigou a que, numa tentativa de salvar a história e as faces, fosse repescada da gaveta onde se encontrava há quinze meses a matéria sobre o indelicado e, porque indelicado, suspeito assessor do primeiro-ministro. Mas o que nasce torto tarde ou nunca se endireita, e no dia em que é tornada pública a 'pista madeirense' o cepticismo dá lugar ao ridículo e à galhofa generalizada.
Daqui em diante, os argumentistas perdem o controle do guião, e foi o que se viu e o que mais se verá. Sem o talento criativo de José Eduardo Moniz, os novos episódios passam a ser escritos em cima do joelho, em resposta às reacções do público ao episódio da véspera.
CDS, BE e PCP - e PSD, ainda que mais envergonhado, pela voz de Maria José Nogueira Pinto - não se cansaram de cantar vitória nas eleições de domingo. Todos tiveram mais votos e o consequente crescimento dos respectivos grupos parlamentares. Do outro lado, o PS foi a única força política que perdeu votos, deputados e viu fugir-lhe a maioria absoluta (foi mesmo o único partido que perdeu a maioria absoluta, sublinho).
Rendido a esta irrefutável argumentação, é com humildade democrática que me resigno à extraordinária derrota do PS, fazendo votos de muitos mais e idênticos sucessos eleitorais a toda a oposição.
Não deixa de ser curioso que, depois de semanas, meses a verberarem as maiorias absolutas, e a do PS em particular, alguns politólogos e analistas tenham passado parte da noite a discorrer sobre as diferentes possibilidades do PS formar um governo de maioria absoluta em face dos resultados desta noite.
Alguém me sabe dizer que horas são?
É o número de votos que Pedro Santana Lopes (2005) conseguiu a mais do que Manuela Ferreira Leite (2009).
Adenda:
Ao contrário do que se diz aqui
Não me sendo difícil de imaginar a dificuldade de José Manuel Fernandes em decidir a primeira página de amanhã deixo aqui ficar algumas sugestões:
«Belém suspeita da fiabilidade dos resultados eleitorais»
«Manuela Ferreira Leite conduz PSD à 10ª maior vitória de sempre»
«Degelo na Antárctida e Gronelândia preocupa cientistas»
Suspeita-se que o PS pode ter vencido as eleições legislativas.